02 junho 2010

Identidade do Circo Candango


É no mínimo curioso escrever sobre Brasília justo no momento em que me vejo de partida, ou de renovação, num ciclo que Brasília jamais deixará de ocupar seu espaço, prefiro enxergar assim. Comprometo-me a escrever a respeito do circo candango sempre que estiver respirando o ar puro dessa cidade.


Venho de uma família diversa, numa cidade diversa, de culturas, comportamentos, histórias e povos, uma “mistureba” geral, pra mim essa é a marca desse lugar, esse é o princípio da minha formação.

Ao mesmo passo que poderia realizar os trabalhos da escola na Biblioteca da Câmara Federal e enxergar a História do Brasil nas páginas da coleção completa do Pasquim, transitando com toda intimidade pelos corredores do congresso e dos ministérios e entendendo seus mecanismos, pude também explorar as longas coxias do Teatro Nacional, com seus camarins e porões, numa aventura infantil, sem reparar se o show estava acontecendo no palco ou não, os bastidores do teatro era o nosso espetáculo à parte. (Ter um pai com forte atuação política ambiental no setor público e ao mesmo tempo percussionista, da geração do Concerto Cabeças, Liga Tripa, Paralamas e Legião, proporcionou isso, mas isso não é um mérito só meu não, é muito comum por aqui essa realidade.)

Cidade da contradição, na terra, sua organização, seus setores, no céu, seu mar, sua liberdade, sua amplidão. Espaço para o desenvolvimento burocrático e criativo não falta, desde que você entenda os limites do patrimônio público e tire bom proveito deles.

Quem nasce em Brasília, cresce com Brasília, somos eternos candangos, porque além de concreto, hoje construímos uma História. Cada agente dessa cidade tem o seu papel fundamental, seja de repressão, seja de transgressão, e assim se forma o conjunto operacional da capital. Restrinjo essa introdução à sensação de ser brasiliense, porque se eu for aprofundar as questões históricas e políticas, poderia estender laudas e laudas sem necessariamente entrar no circo em questão.

Não posso falar do desenvolvimento cultural de Brasília sem falar de política (são poucas as questões tratadas em Brasília que não comunicam com a política). Ao longo da minha atuação política (não exerço nenhuma atividade no poder público, mas nascer em Brasília e se incomodar com o próprio desenvolvimento profissional, provocaram naturalmente a minha atuação política) percebi a cultura brasiliense como um setor abandonado desde a sua formação.

Pude confirmar essa minha observação, lembrando das reclamações do meu avô sobre a sua gestão militar dentro da Fundação Cultural, em fatos como: a construção do Teatro Nacional (única obra aprovada não concluída para a inauguração); a falta de profissionais na Fundação Cultural (sua equipe nunca foi nomeada oficialmente, a Fundação foi vítima por anos de funcionários indicados ou “deixados por lá”); a instituição do Ministério da Cultura (só em 1985 se constituiu a primeira Secretaria de Cultura da Presidência da República, que pouco depois foi transformada em Ministério); a falta de legislação para a cultura no governo do Distrito Federal (em 2008 foi instituída a primeira Frente específica de Discussão da cultura dentro da Câmara Legislativa); sem contar com a construção do Museu da República e da Biblioteca Nacional (obras aprovadas somente em 2005).

Enfim acredito que os dados acima já podem situar os leitores do caos em que sempre se instalou os subsídios públicos da cultura dessa cidade.

Apesar dessa realidade, crescemos enquanto setor na proporção da atividade operária da Capital (costumo dizer que a produção cultural de Brasília, comunica fielmente com o lema de JK, “50 anos em cinco”). Brasília fomenta cultura, desde as serenatas circenses apresentadas no Teatro Nacional, dividindo espaço com ratos e corujas desafinadas, até o desenvolvimento de mais de noventa grupos de circo e cultura popular espalhados pelos gramados e espaços culturais da cidade.

O terreno legal do nosso desenvolvimento gerou muita luta política, ressentimentos e frustrações, mas o terreno “proibido” amplia a capacidade de criação do nosso potencial artístico e oferece um campo de força e resistência, lançando a cultura do Distrito Federal. E é nessa lacuna que iniciamos nossa atuação.

O circo é estrutura sem lei, ou autônoma no seu funcionamento, onde os princípios de partida para o empreendimento profissional agregam valores familiares, sociais e humanos, sobrevivendo e se transformando até hoje de acordo com o simples retorno do público.

A legislação ainda não é capaz de compreender os moldes de gestão do circo, moldes diversos e flexíveis. (Em uma das plenárias sobre a Lei do Circo, me marcou o comentário que dizia mais ou menos assim: - Uma casa que se permite ser comparada a um teatro na arte de interpretar ou de mentir muito bem, e que não se permite ser comparada a um circo, julgando essa arte como atividade de arruaça e a figura do palhaço como expositor do caos humano, considerando isso corrosivo ao desenvolvimento da sociedade, não pode legislar sobre o Circo Brasileiro).

Pude em Brasília, crescer em meio a ações intrépidas “de tirar o chapéu” como o Gran Circo Lar (foi um espaço destinado ao lazer e execução de eventos culturais para a população da cidade de Brasília. Sua localização era do lado sul da Esplanada dos Ministérios. A estrutura do circo era bem diferente de um circo convencional. O Gran Circo Lar fora construído em alvenaria, com seu picadeiro todo em concreto. Por fora, o circo tinha suas paredes decoradas com os azulejos de Athos Bulcão e era coberto por uma enorme lona tradicional, foi berço dos projetos de circo social da cidade), o Esquadrão da Vida (Fundado em 1976, por Ary Para Raios, poetizando a rebeldia em estado bruto, a ironia sem máscara, o escárnio puro em protesto contra um filhote da ditadura, o Esquadrão da Morte, apesar da sua polêmica atuação, colocava a cidade para acordar de manhã cedo e seguir em cortejo pelas superquadras residenciais, era incrível!), o Mestre Zezito (Mestre da palhaçaria do DF, disseminador do brincar popular brasileiro em todas as suas vertentes).

Mestre Zezito era um modelo ideal de ação comunitária, onde o foco fundamental estava do desenvolvimento social a partir da convivência e do fazer artístico. “Pra aprender essa arte menina, você tem que acordar cedo, se deslocar até aqui, fazer a feira, o almoço, entreter a criançada,, construir brinquedos com a comunidade, preparar o lanche, tirar uma soneca, dedicar 30 minutos de leitura coletiva das esquetes tradicionais e ensaiar no picadeiro da noite do circo montado no quintal” e assim  nasceu a palhaça Minhoca.

Como pra mim, essas três referências foram o berço do circo candango, em paralelo obviamente às grandes lonas dos circos tradicionais que por aqui passavam meses e até anos, montando suas praças na vastidão de povoados encontrados no DF, com todas as suas regiões administrativas e entorno (isso pra mim foi uma riqueza imensurável, pude aprender tanto a estrutura de funcionamento de um circo, quanto às técnicas, as histórias, os tipos de gente, a humanidade. Foi por essa convivência que me arvorei mais a frente a comprar uma lona de circo junto com meu grupo, mas essa é outra história).

Enquanto eu ainda era uma criança em contato com tudo isso, já despontavam grupos como o Circo Teatro Udi Grudi, o Celeiro das Antas, o Hierofante, gerando a minha geração, de Artetude, Movimento Rua do Circo, Instrumento de Ver, CETAC, Engenho Arte Circense, Circo Rebote, enfim, muitos grupos que se montara e desmontaram, casaram, separaram e deixaram crias, não posso citar todos por obviamente deixar muitos passarem batidos.

Pude firmar e confirmar a força do fomento das artes circenses do DF, tanto no ponto das riquezas das diferenças, quanto no potencial criativo, após nove anos de atuação circense na cidade, cinco anos de presidência do Fórum de Circo e idealização junto ao coletivo da Mostra Zezito de Circo, consegui num exercício de distanciamento do olhar, enxergar claramente essa história e o quanto é rica na contribuição da minha formação enquanto artista, palhaça, produtora e candanga.

 Brasília cativa e espalha muita arte pelo mundo. E eu, me espalharei um pouco mais por outros territórios, levando sempre essa versatilidade brasiliense e voltando sempre que precisar do aconchego da terrinha, aliás, a ponte aérea pra Capital está super acessível.

 Adeus Brasília, vou morrer de saudade!!!

Brasília, 03 de novembro de 2009.

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